sexta-feira, julho 25

Sexta-feira de julho

I
O sol nem saiu ainda e já estamos nus na cama. Ele me olha com aquele olhar investigativo outra vez. “O que será que ele quer?” - penso ainda com os olhos mais fechados do que abertos. Ele passa mão pelo meu cabelo, me faz um cafuné brincando de me amansar e me puxa pra perto do seu peito. Sinto aquele cheiro forte de novo. Não sei mais viver sem isso (e me censuro por pensar que sou uma viciada).
Ficamos ali por uns quarenta minutos. Ou foram três horas? Com certeza foram só alguns segundos...
Quando a responsabilidade começa a pesar mais do que a nossa vontade de ficarmos abraçados na cama, resolvemos nos entregar à rotina. Ele me afasta, gentilmente, de seu corpo e se levanta caminhando em direção ao banheiro logo ali do lado. Penso sinceramente em inventar uma desculpa esfarrapada pra ganhar mais algumas horas ao lado daquele homem, mas ele me distrai ao perguntar “oxe, tu não vem não?” e eu desisto mais uma vez de querê-lo só pra mim naquela cama...
Sempre admirei a praticidade dele. Acho que opostos se atraem mesmo, afinal quem além de mim leva mais de dez minutos pra levantar, mais dez pra escovar os dentes, mais dez pra pentear o cabelo, mais dez pra tirar a roupa e outros dez pra entrar no chuveiro? Ao invés de cinquenta minutos pra fazer o básico, ele, ainda no banho, me puxa pra debaixo d’água e me acorda do jeito mais romântico possível. Sim, porque até então eu ainda estava meio sonolenta, mas ser beijada na boca assim que você acorda é prova de amor cabal. E o amor acorda qualquer um.

II
Entramos no carro que ainda estamos pagando. Malditas prestações. Ele dirige. Eu aproveito para ler minhas notificações no celular. Sei que ele percorre o mesmo caminho de sempre. E sei que aquela mão já percorreu tantos lugares e agora estão ali me guiando ao meu destino. Ouvimos as notícias no rádio. Mas eu queria mesmo é que ele colocasse Stevie Ray Vaughan. Desisto do aparelho que estava há pouco em minhas mãos e tento ignorar o trânsito. A paciência dele me inspira a não reclamar. Penso em um milhão de coisas enquanto a hora de ouvir a voz dele outra vez não chega. Lembro da mesa de trabalho, dos amigos que eu prometi visitar, das contas que ainda não chegaram, do bolo que eu esqueci de comprar pra festinha de despedida do estagiário, nas próximas férias... Nem sinto o carro parar. Ele finalmente interrompe meus pensamentos “Tudo bem com a minha princesa? Parece distraída... Tava pensando em quê?”. Sorrio brevemente. “Em nada.”

III
Meu colega entra de uma vez na minha sala e anuncia “o Dr. tá vindo”. Agradeço com um sorriso. E entro em pânico por três segundos ao pensar que ainda não tô pronta pra ir embora. Daqui a pouco ele liga. Olha aí, não falei? “Oi meu amor. Ah, você já tá vindo? Uhum. Tô quase pronta. Tá bom. Até já. Beijo, tchau”. O quase pronta é um eufemismo, lógico. Não demorou muito para eu ouvir a porta abrindo. Algumas risadas e comentários sobre o jogo do Corinthians. Minha chance de ficar calada. Ele me flagra olhando pra ele e pra tela do computador ao mesmo tempo. Faz charme, nem fala comigo. Eu continuo minha leitura ignorando meu conselho mental de desligar tudo imediatamente pra ir embora com ele. Nem percebo quando ele se aproxima e me dá um beijo no rosto. Fico vermelha ao imaginar que os colegas viram aquela cena. Minha timidez não me deixa exibir esse momento como deveria. Ele para, me olha. Eu digito qualquer coisa pra lembrar no outro dia. Ele pega a minha mão e desliga toda a tecnologia que cede no primeiro clique. Tudo bem, eu cedo também. Mal posso esperar pra jantar com ele hoje a noite.

III
Experimento a camisola nova. Ele, o macarrão novo. Os dois ficaram bons. Os dois combinam muito bem. Durante a refeição, falamos de coisas boas. E de coisas ruins também. Política, escândalos no país que amamos e escolhemos ficar, caos na saúde, descaso com a educação, eleições, o álbum novo do Judas Priest e aquele filme novo que a gente esqueceu o nome com aquela atriz que eu esqueci o nome. Ele me chama pra ir ao cinema pela milésima vez. Aceito pela milésima primeira vez. E pela milésima segunda vez, vamos preferir nosso aconchego em casa e deixar o telão com pipoca pra semana que vem mesmo.
Arrumamos a cozinha. Ele cozinhou, eu sei. E por isso mesmo vai ajudar a lavar a louça. Recolho a mesa. Guardo a louça de ontem. Aguo as plantas. Fecho as cortinas. Enquanto ele toma banho eu arrumo a cama pra gente deitar. Ele sai e prefere aquela bendita cadeira. Aquela em que ele se perde no mundo da literatura. Eu me distraio com o celular de novo. Já se passou um tempão e ele continua lá. Inerte. Maravilhado com Guimarães Rosa. Fico ali em pé pertinho da porta vendo ele concentrado no que o mineiro de quatro olhos escreveu. Ele esboça um sorriso e eu suspiro. Essa minha mania voyer assim desajeitada me entrega. Não consigo nem disfarçar. Mas tento. Pego ele pela mão, levo pro quarto e digo sem enrolação “Quero colo! Esse travesseiro me dá dor nas costas, você sabe disso”. Ele ri da minha cara de pau e pede pra escovar os dentes primeiro. Ajeito a camisola e meu livro de cabeceira. Ele acende o abajur amarelo e se deita. Ponho minha cabeça em suas coxas tentando me aninhar naquele corpo quente. Suponho que Guimarães não esteja mais tão interessante assim porque ele fica me olhando. Deve ser a camisola que ficou ótima mesmo.
Tento reunir a pouca seriedade que me sobra pra leitura. Consigo a proeza de ler duas páginas sem prestar atenção se ele continua me olhando. De repente, sinto aquela mãozona de despachar processo subindo pelas minhas coxas, passando pela minha barriga e parando em meus seios. Aproveito e apoio o livro em seu braço, que é pra não deixa-lo sair dali. Tento, inutilmente, continuar minha leitura, mas os personagens falam coisas que eu não entendo naquele momento. Sinto um calor, uma sede e uma vontade de não sei o quê. Ou melhor. Sei sim. Vontade dele. “Amor, vamos dormir?”.

IV
Mesmo na escuridão eu consigo ver aqueles olhos me devorando lentamente. Abro minhas pernas pra recebê-lo. Eu quero. A penumbra revela as três pintas que ele tem pelo tronco. Nunca sei de cor onde elas ficam, mas sei exatamente onde buscá-las e encontrar o que eu gosto tanto.
A camisola no chão faz companhia pra qualquer coisa que estivesse cobrindo aquele corpo. Sobre a cama, somos nós dois. Nós e apenas o desejo de se amar.
Palavras sussurradas ao pé do ouvido acompanham juras e confissões. Nossa cumplicidade está ali, entre nós. E podemos nos entregar sem medo um ao outro. Esqueço até que vou ter de trocar os lençóis. Ele nem liga pra isso. Estamos mais concentrados no nosso ritmo. Tão nosso, esse que muda todo dia. Com beijo, sem beijo, tanto faz. Se bem que sempre tem beijo.
A função fática da nossa linguagem dispensa palavras. As reações são sonoras e imediatas. Tato e olfato bom pra caralho. Perco a noção do tempo de novo. Ficamos ali por uns quarenta minutos? Ou foram três horas? Com certeza foram só alguns segundos...
O clímax é prolongado. Faço minhas caras e bocas que não levam a lugar algum. Ele me abraça, me acolhe em seus braços. Lembro-me de todas as músicas românticas que eu julguei tão bregas. Agora consigo entender o compositor. Mas continuam bregas, não importa.
E ele ali tão sereno. Mal sabe ele o que se passa aqui dentro. Talvez amanhã eu conte. Talvez não. Fico distraída com meus pensamentos indecisos. Percebo a respiração lenta daquele peito. E me permito cair no sono antes que o dia amanheça outra vez.

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