segunda-feira, dezembro 12

A menina do palito

Eu estava na sétima série do ensino fundamental. Era uma garota tímida, mas que tinha bom relacionamento com todos os colegas do colégio, apesar de não fazer parte de nenhum grupinho. E tinha essa garota. Ela desenvolveu um corpo de mulher muito rápido. Peitão, bundão e cinturinha fina. Muitas garotas não tinham nem saído das fraldas direito e a Taís já tinha cara de modelo da capa da playboy. Tudo bem por mim, ela era legal. Mas pras outras meninas, ela era uma puta (é isso que dá ser adolescente. Se você não pode ser o centro das atenções, é guerra!).
Daí teve um dia na aula de educação física. Aquele dia que você acha que nunca vai acontecer com você.

Eu não estava nem um pouco afim de fazer a aula. Eram dois horários com as meninas de duas turmas. Jogando handebol. Isso significa bolada na minha cara com certeza.
Inventei uma desculpa qualquer pro professor, mostrei minha mão "imobilizada" (enfaixei igual a minha cara) e ele me mandou esperar na arquibancada. Legal. Duas horas olhando as cavalas da minha turma perderem pras brutamontes da turma "D".
Fiquei entediada e fui conversar com as outras meninas que estavam esperando pra jogar. Eis que avisto Taís ali meio avulsa, tentando se enturmar, coitada. Quando cheguei, ela quis mexer nos meus longos cabelos e fazer um penteado super legal com o palito de madeira que eu tava usando. Sim, porque depois de gastar todo meu tempo "enfaixando" minha mão eu não conseguia prender o cabelo, saí apressada e a única coisa que encaixou de primeira foi o palito de madeira (estilo o que as japonesas usam para fazer aquele coque de gueixa, sabe?).
Mexe cabelo dali, mexe cabelo de lá. Pronto. Taís achou um penteado e prendeu com o palito. Lá tava eu com o cabelo desgrenhado no meio do ginásio indo sentar de novo na arquibancada. Taís foi treinar saques e manchetes de vôlei com outra colega (isso porque a aula era de handebol - e as outras alunas lá, se matando no meio da quadra). 
De repente, não mais que de repente, Taís mandou uma mega manchetona que a bola de vôlei foi parar no teto do ginásio e caiu.... na minha cabeça. Pois é. O ginásio era imenso, a porra da bola foi no teto da parada e achou de cair aonde? aonde? sim, na minha cabecinha linda. Até então eu só senti a pancada na cabeça. Xinguei internamente, as meninas riram porque mesmo sem estar jogando eu levei uma super bolada como de costume, e tudo bem.
Tudo bem por dois minutos só.
O palito de madeira que Taís prendeu no meu cabelo estava na posição vertical. E a bolada que Taís mandou, sem querer, na minha cabeça, teve uma força suficiente pra fazer o palito perfurar o meu pescoço. Bem ali no final do couro cabeludo, entre onde acaba o cabelo e fica a pele da nuca.
Pois é. Dois minutos depois da bolada eu comecei a sentir um ardor no pescoço, já na parte final da nuca, começo da coluna. Chamei Cascia, minha amiga, e pedi pra que ela visse se tinha algum bicho me picando nas costas. Ela não viu bicho nenhum e o ardor começou a ficar mais intenso, parecia uma bola de fogo queimando toda a minha coluna. Foi me dando uma agonia, eu não sabia se chorava, se gritava, até que Cascia disse "peraí, vamos tirar esse cabelo todo aqui da nuca pra eu olhar melhor". Quando ela tentou tirar o palito, ela não conseguiu. Fez força, e o palito não saiu. Eu passei a mão na minha nuca, fiz toda a força do mundo, e o bendito do palito não saiu, tava lá, fincado na minha nuca. Em momentos de verdadeiro pânico eu não sei reagir. Sou o tipo de pessoa que fica relembrando mentalmente cenas que se passaram e tentando remontar todo o diálogo que eu poderia ter tido, se não fosse a minha timidez, falta de reação, ou sei lá o quê. O fato é que eu me lembro claramente o que aconteceu depois. E nenhuma cena que eu relembre desse dia podia ter alteração.
Cascia, diante do palito preso na minha nuca, gritou pra todo o ginásio "TEM UM PAU NA CABEÇA DA ROBERTA!"
Como, em sã consciência, a pessoa me grita que tem um pau na minha cabeça? eu tive que rir porque não sabia da gravidade da situação e só me restou ficar ali enquanto todas as meninas - as cavalas, as brutamontes e as minhas amigas - correram pra ver o tal do pau fincado na minha cabeça. Ôh gente! Eu congelei numa posição só. Fiquei com as costas abaixadas, parecendo japonês cumprimentando alguém. Daí eu só vi os pés da professora de educação física correndo pra me acudir. Eu gritava "tira esse palito da minha cabeça! tira!" e ela tentou meio que fazer um exorcismo pra parada sair. AveMariaCheiadeGraaaaaaaaaaaaça (*tentando puxar o palito*). E nada da porcaria se mexer.
Chamaram o tio da cantina, um homem cinquentão, magro, franzino, que usava calça social e camisa pólo. Ele calado, fez uma força homérica e PÁ, puxou o palito. Como você, amiga inteligente, pôde deduzir até agora, em uma situação assim, NÃO puxe o palito! Mesmo que a pessoa esteja gritando de dor, a providência é levar pro hospital e lá ser feita a remoção.
Pois bem, Já que tinham conseguido tirar o palito, foram me levar pro hospital.
No caminho pro carro da diretora, eu vi todos os rostos das colegas de classe: umas chorando, outras assustadas, ninguém filmando pq não tinha celular pra adolescente naquele tempo haha, Taís pedindo desculpa sem parar e a que mais me marcou, a Mariana "Medusa" chorando me dizendo "Robertinha, se algo acontecer com vc, a gente vai pegar a Taís de porrada vei!" e eu respondendo "tá bom vei!".
Bom, nada de porrada. Nada de nada mesmo. Fiquei bem. Minha mãe quase me mata quando soube que eu quase morri. O ortopedista de plantão fez uma ressonância e viu que o palito perfurou apenas meu músculo. Faltaram dois milímetros pra atingir minha coluna cervical. Dois milímetros me salvaram de estar tetraplégica ou paralítica. Acho que Deus tem um plano na minha vida. Só isso explica porque eu não tô numa cadeira de rodas hoje. Meu anjo da guarda deve ter recebido um bônus pra me salvar dessa.

Bom, a volta pra casa e pro colégio foram complicadas.
Taís me ligou chorando achando que a culpa era toda dela. Eu sabia que tinha sido um acidente. Foi idiotice dela colocar o palito na vertical. Foi estupidez minha estar num ginásio com um palito. Desculpei a garota. Mas nunca mais nos falamos direito. Ela mudou de turno e mesmo assim continuou rejeitada. Além de puta era quase assassina também. Não devia ser fácil estar na pele dela. Ela fez terapia até o terceiro ano ou mais. Hoje está casada, tem dois filhos e acredito que sua filhinha não usa palito de madeira. 
E eu? Bem, eu fui o centro das atenções do colégio. Pelo menos por uma semana. Usei um colar cervical por longos 45 dias. No começo todo mundo sentia peninha de mim. Professores me paravam no meio do corredor, ou me chamavam pra entrar numa sala de aula pra perguntar "quantos pontos você levou? 35 ou 43?" Ficavam decepcionados quando eu dizia "apenas um ponto pra fechar o furo que o palito fez na pele, mas, veja, foram duas anestesias, olha que coisa!". Meu crush na época me ajudou a carregar meus materiais e sempre pegava água pra mim. Foi a coisa mais romântica que alguém já fez por mim na sétima série. Ah, agora o colégio tem uma regra inflexível de não poder entrar no ginásio, nem fazer aulas de educação física usando palito ou objetos pontiagudos em qualquer lugar do corpo. Tudo por causa da "menina do palito".

Por fim, um detalhe curioso. Eu não lembrava de como tinha sido a história entre o momento em que levei a bolada e o momento em que o tio da cantina arrancou o palito do meu pescoço. Eu lembrei só depois que me contaram a história pela milésima vez. Foi mesmo uma deslembrança... Agora é a lembrança que guardo e que me dá a certeza de que ninguém sai intacto do colégio. Literalmente.


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