segunda-feira, agosto 1

Nêisinha

Esses dias eu tava me perguntando: quantas mulheres negras não largaram seus próprios filhos para criar o filho de outras mulheres (muitas delas brancas)?
Não é sobre racismo, não é isso. Também não pensei na segregação social assim de cara.
Imaginei uma coisa meio freudiana achando que uma das explicações pro preconceito do estigma do criminoso ser "preto e pobre" seria exatamente uma mãe negra e pobre que ao sair para trabalhar entrega seu filho a alguma vizinha conhecida muito bem intencionada e pouco quase nada mãe (no meu pensamento sempre tem uma vizinha ou amiga pra ajudar).

Foi aí que eu me lembrei de quantas negras passaram pela minha vida durante a infância e começo de adolescência. Quantas foram minhas "mães" e me educaram. A mais especial foi a Marinês. A Nêisinha.
"Avise a dona Carmen que sou preta, pobre e evangélica".
Minha mãe, branca, divorciada, nordestina, sofrida, forte e rígida, precisava emendar um plantão atrás do outro e não tinha nem vizinha, nem amiga. Tinha dois diamantes brutos, uma de 11 anos e um de 6 pra lapidar.

Marinês chegou tão tímida. Tímida ficou. Cantava os hinos do Senhor enquanto lavava louça. Tinha uma voz de anjo. De anjo negro, que são os que cantam mais bonito.
Não mandava. Mas a gente obedecia. "Robertinha, você já viu a hora? Quer tomar banho agora ou almoçar primeiro?"

Quando eu chegava da escola sempre tinha café quentinho. E pão. Nêisinha sempre fazia uma oração silenciosa e breve antes de comer. De certo agradecia a Deus pelo alimento. Eu nunca acompanhava a reza. Mas esperava ela abrir os olhos pra dar a mordida no pão, que era pra não atrapalhar Deus a ouvir a prece.

"Boa noite, Marinês!" ela fechava a porta do quarto e eu via pela fresta a sombra de uma mulher pequena ajoelhada com um livro aberto. Não demorava muito e casa toda ficava escura.

Com o tempo aprendi a ouvir muitas das histórias que ela tinha pra contar. Aprendi que é bom tomar sol de manhã por que tem vitamina D. Em três dias sabia o Salmo 23 de cor e salteado. Nêisinha aprendeu comigo a contar até doze em inglês. Nunca tinha visto uma maranhense falando "twelve". Ela aprendeu tão ligeiro que eu pude até ensinar como dizer as horas.
Com ela eu aprendi a não olhar mais as horas. Gravei o cheiro das flores do jardim. Entendi que pecado é o que a consciência acusa. Que Deus ampara e acolhe os que precisam. Exatamente como a gente deve fazer com o próximo. Que o Diabo não tem culpa de tudo, mas está sempre à espreita. Que a gente deve se proteger e não julgar. Tava graduada em religião agora.

"Nêisinha, não se inquiete como sua prima Ceiça. Ela não confia em Deus. Você me ensinou que devemos esperar nEle. Eu tenho certeza de que o seu marido vai chegar".
Nem eu sei de onde eu tirava essas coisas.

Virei modelo do jardim. Ela queria uma foto dos diamantinhos. Eu no meio das bonecas. Eu no jardim. Eu no quintal. Eu pequena. Eu grande. Só ela pra me arrancar pose de todo jeito. Só pra ela eu sorri como criança. Só eu criança podia esquecer de pedir pra ela sair na foto também.

Nêisinha me ensinou que sofrer bullying faz parte da vida. Que ser zoada é muito engraçado, quando você aprende a rir de si mesmo. Eu parecia mesmo a caipirinha do Tio Du na festa junina. E eu tava linda com minhas bochechas tão rosadas.

"Marinês, hoje tem frango. Fica pra comer com a gente?". Nêisinha tinha um amor muito grande aos domingos. Eu também. O dela era a igreja. O meu, era almoçar com minha mãe. Dona Carmen sempre cozinhava um monte de coisa gostosa. E sempre tinha sobremesa. Marinês foi desaparecendo do momento da sobremesa e até dos almoços de domingo. Um belo dia, ela abraçou o amor pela igreja de vez.

Alguns anos depois ela entrou em contato conosco. Veio passar o aniversário de 14 anos do diamantinho irmão com a gente. "Roberta, você tinha razão. O Senhor mandou meu marido". E eu me lembrava que eu tinha dito isso? Nem ela lembrava como dizia doze em inglês. Empatou.
Nunca mais vi foto. As fotos do aniversário queimaram. Nem prestou pra revelar.

Ela se tornou pastora de uma comunidade pobre. Tenho notícia do trabalho de caridade que ela faz. Ajuda muita gente. É ajudada. Não sei se teve filhos. Abortou alguns no começo do casamento. Espontâneo. Sofrido. Não sei se ela tem vizinha ou amigas quase mães pra deixar os diamantinhos dela.

E eu? Bom, eu continuo amando os almoços de domingo. Agora sou eu que lavo a louça cantando. E mudei de religião. Ainda sei o Salmo 23 de cor. Conheço o cheiro das flores. Não poso mais pra foto. Nunca mais ensinei ninguém a falar inglês. Aprendi a me proteger e não julgar.


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